Procuradoria de Justiça Militar no Rio de Janeiro pede condenação de militares pela morte do músico e do catador em Guadalupe

A 1ª Procuradoria de Justiça Militar no Rio de Janeiro apresentou alegações escritas pedindo a condenação de oito militares (um 2º tenente, um 3º sargento, um cabo e cinco soldados) do Exército pela morte de dois civis e pelo atentado contra a vida de outro, em Guadalupe, Zona Norte do Rio de Janeiro. Em 07 de abril de 2019, em área urbana densamente povoada, os militares efetuaram 82 disparos de fuzis contra o carro no qual estava um músico no banco do motorista e seu sogro no banco do carona e contra um catador de recicláveis que se aproximou do veículo para prestar socorro ao motorista que estava inconsciente.

Em 10 de maio de 2019, o Ministério Público Militar ofereceu  denúncia contra 12 militares pelos crimes de  tentativa de homicídio qualificado pelo fato de terem agido com excesso ao atuarem em legítima defesa do dono de um carro roubado; homicídios qualificados por terem causado a morte de um músico e de um catador de recicláveis; tentativa de homicídio qualificado por terem atentado contra a vida do sogro do músico e omissão de socorro às vítimas feridas.

A denúncia narra dois momentos distintos em que foram feitos os disparos dos militares naquele dia 7 de abril de 2019. Por volta das 14h30, um grupo de combate composto pelos militares, sob a chefia do tenente acusado, deslocava-se em uma viatura do 1ºBatalhão de Infantaria Motorizada Escola para os Próprios Nacionais Residenciais (PNR) quando se deparou com um roubo de automóvel no qual o seu proprietário estava sob ameaça de uma pistola. Nesse contexto, os acusados, a fim de repelir a ameaça ao dono do veículo roubado, efetuaram disparos de fuzis, em região urbana, na direção dos autores do roubo, que embarcaram no veículo roubado, um  Honda City branco, e num Ford Ka branco não identificado e empreenderam fuga trafegando pela Estrada do Camboatá.

Ocorre que dois desses disparos de fuzil atingiram outro Ford KA branco, dirigido pelo músico que, com sua esposa, sogro, filho e amiga, acessava a Estrada do Camboatá vindo da Travessa Brasil, a cerca de 250 metros do local do roubo. Um desses tiros atingiu o músico e ele começou a perder os sentidos.

No segundo momento descrito da denúncia, o Ford Ka da família parou mais a frente e os ocupantes do banco de trás, a esposa, o filho e a amiga da família, saíram do carro buscando abrigo e pedindo ajuda. O sogro permaneceu no carro, no banco do carona. Nesse instante, o catador de recicláveis, que se encontrava próximo ao local com seu carrinho, foi socorrer o músico ferido, colocando-se ao lado da porta do motorista.

Os militares embarcados na viatura militar, que prosseguiram na Estrada do Camboatá e já tinham perdido de vista os dois carros conduzidos pelos autores do roubo, encontraram o Ford KA branco do músico parado, com a porta traseira direita e as portas dianteiras abertas e com o catador em pé ao lado do motorista.

Supondo tratar-se dos autores do roubo do Honda City, o tenente e, na sequência, sete dos demais acusados deflagraram 82 disparos contra o veículo Ford KA branco e contra o catador, que ainda tentou correr, mas foi alvejado no braço direito, nas costas e caiu ao solo.

O músico, que permanecia desacordado no banco do motorista, foi atingido, pelas costas, por mais oito disparos de fuzil e morreu no local. O seu sogro, agachado entre o banco do carona e o painel durante os disparos, foi ferido com tiros de raspão nas costas e no glúteo direito e saiu correndo do carro para se abrigar assim que os disparos cessaram. O catador morreu 11 dias depois em um hospital em consequência dos tiros.

De acordo com o Laudo de Perícia em Veículo, o automóvel das vítimas foi atingido por 62 disparos efetuados pelos militares. Os outros disparos que foram efetuados na direção do catador quando este corria para se abrigar, além de alvejá-lo, atingiram também o bar e a oficina locais, bem como os carros estacionados em frente ao conjunto de apartamentos conhecido como Minhocão.

As testemunhas presenciais ouvidas durante o processo confirmaram a dinâmica dos fatos narrados da denúncia. Também os acusados, em seus interrogatórios judiciais, admitiram terem disparado contra os assaltantes do automóvel Honda City branco, contra o automóvel do músico e contra o catador. Contudo, tentaram justificar suas ações dizendo que não houve excesso no primeiro evento e que atiraram no carro do músico no segundo momento porque acreditavam ser o carro no qual estavam os assaltantes, além de estarem sofrendo disparos do catador que portava uma pistola.

Para o MPM, no que tange aos homicídios qualificados dos dois civis e a tentativa de homicídio qualificado do sogro de uma das vítimas fatais, “a prova da responsabilidade criminal dos oito acusados que atiraram é robusta, cabal e incontestável, materializada por depoimentos de testemunhas presenciais, provas periciais e o vídeo com a filmagem do momento dos fatos que comprovam a grande quantidade de disparos efetuados e a ausência de qualquer agressão ou ameaça por parte das vítimas”.

Segundo se extrai das alegações escritas do MPM, a versão dos acusados não tem fundamento nas provas dos autos. Os moradores do conjunto de apartamentos conhecido como Minhocão que presenciaram os fatos viram a esposa, o filho e a amiga do músico saindo do carro e pedindo ajuda e o catador se aproximando para socorrer o motorista inconsciente. Não viram nenhuma arma ou qualquer tipo de agressão por parte do catador contra os militares. Além disso, a suposta arma atribuída ao catador pelos acusados não foi encontrada, nenhum estojo percutido e deflagrado foi localizado no local onde estava o catador e o músico, não foi identificado nenhum vestígio de disparo na viatura militar e o dono do automóvel roubado não reconheceu o músico ou o catador com um dos assaltantes.

“Mesmo que o carro fosse o dos assaltantes, o que comprovadamente não era, ainda assim, os acusados não poderiam ter disparado seus fuzis sem estarem sofrendo agressão ou ameaça. E ainda que sofressem uma ameaça de um agente com uma pistola naquele contexto, não poderiam violar o padrão legal do uso da força, em especial o emprego da força progressiva e proporcional e a tomada de todas as precauções razoáveis para não ferir terceiros, ainda mais em área urbana densamente povoada.

Os acusados definitivamente, por prova segura e inconteste dos autos não estavam em situação de legítima defesa. Os militares apertaram os gatilhos de seus fuzis sem previamente certificarem-se de quem eram as pessoas à sua frente. E o fizeram – que fique claro – porque desejavam executar as pessoas que estavam dentro do veículo, acreditando que ali se encontravam os criminosos com quem haviam trocado disparos anteriormente”, escreve o MPM nas alegações finais.

Ainda segundo o parquet militar, todos que deflagraram disparos de arma de fogo concorreram para as duas mortes e para os ferimentos na terceira vítima e, com base na prova segura dos autos, inexistindo causa apta a juridicamente justificar suas condutas, devem ser condenados pelos crimes de homicídio. “Importa destacar que todos que atiraram agiram em acordo de vontades e desígnio comum, movendo-se na ação criminal como um corpo único, pouco importando, portanto, de quem partiram os disparos que efetivamente atingiram as vítimas”, esclarece a promotora e o procurador de Justiça Militar que assinam o documento.

O MPM argumenta ainda que a pena do tenente deverá ser fixada acima do mínimo legal pelo fato de ser o oficial comandante daquele grupo de combate, de ter sido o primeiro a atirar sem certificar-se de que não sofriam ameaça ou agressão, tendo os demais subordinados aderido a sua conduta e por ter sido o acusado que deflagrou a maior quantidade de disparos de fuzis contra as vítimas quando o veículo estava parado próximo ao prédio residencial.

A 1ª PJM no Rio de Janeiro pediu a absolvição dos militares no primeiro evento descrito na denúncia porque não foi possível comprovar, pelo controle deficiente da munição utilizada, se houve o excesso criminoso por parte dos militares na legítima defesa do proprietário do automóvel roubado que estava sob ameaça de arma de fogo.

Quanto ao segundo momento descrito na denúncia, o MPM pediu absolvição de quatro militares acusados por não haver provas de que tenham disparado contra o automóvel do músico e contra o catador, e portanto, não participaram dos crimes de homicídio qualificado, nas modalidades consumada e tentada.

Também não restou configurado crime de omissão de socorro das vítimas feridas. Foi verificado nos autos que o tenente acusado pediu socorro da Polícia Militar logo após o ocorrido.

O MPM pede que os oito militares que atiraram contra o automóvel do músico e contra o catador, causando suas mortes e ferindo o ocupante do banco do carona, sejam condenados pelos dois homicídios qualificados e pela tentativa de homicídio qualificado. O crime está previsto no art. 205, § 2º, do Código Penal Militar.